TEXTO 7: O ímpeto suicida do capitalismo - Robert Kurz
  FONTE: http://planeta.clix.pt/obeco/rkurz87.htm
Catástrofes  de grandes proporções e dimensão simbólica têm sido  sempre,
na história da humanidade, ensejo para uma ponderação cuidadosa em que os
poderosos do mundo perdem sua hybris, sociedades refletem sobre si mesmas
e  reconhecem  seus  limites. Nada disso se pode  observar  na  sociedade
mundial  capitalista depois do ataque kamikaze aos centros  nervosos  dos
EUA.  Chega  a  parecer  que  o  ataque  bárbaro  vindo  das  trevas   da
irracionalidade teria arrasado não apenas o World Trade Center mas também
os  últimos  resquícios  de  capacidade  de  julgar  da  opinião  pública
democrática mundial. Essa sociedade não quer reconhecer a si  própria  no
espelho  do terror; na verdade, sob a impressão do horror, ela  se  torna
mais   presunçosa,  mesquinha  e  irrefletida  que  antes.  Quanto   mais
violentamente lhe apontam seus limites, mais fortemente ela se  agarra  a
seu  poder  e mais cegamente cultiva sua unidimensionalidade.  Depois  do
ataque  terrorista, o funcionalismo de elite, a mídia e  o  populacho  do
sistema global de "economia de mercado e democracia" estão se comportando
como  se  fossem todos atores e figurantes numa encenação real  do  filme
"Independence Day". Hollywood pressentiu um acontecimento apocalíptico  e
o  filmou como representação de patriotismo kitsch e moral jeca. Assim  a
indústria  cultural banalizou e tornou irreal a realidade  da  catástrofe
antes que esta se tornasse mesmo real. O luto espontâneo e a perplexidade
dão  lugar  aos  falsos rituais de um padrão programado  de  reação,  que
impossibilita a compreensão de qualquer nexo interno entre  terrorismo  e
ordem  dominante.  Fica claro o endurecimento da consciência  democrática
oficial,  transformada  em  furiosa falta de ponderação,  quando  o  ator
diletante presidente dos Estados Unidos jura uma "luta monumental do  bem
contra  o  mal".  Retratando o mundo assim de modo  "naïf",  as  próprias
contradições internas são projetadas para fora. É o esquema elementar  de
toda  ideologia: em vez de revelar o contexto repleto de  implicações  em
que  se  está envolvido, é preciso encontrar uma causa exterior  para  os
acontecimentos  e  definir um inimigo externo.  Mas,  diferentemente  dos
mundos  de  sonho juvenis de Hollywood, não haverá "happy  end"  na  dura
realidade  da  sociedade mundial que se despedaça. Em "Independence  Day"
são, como convém, extraterrestres que atacam a própria "terra de Deus" e,
claro, acabam sendo heroicamente rechaçados. Esse papel de alienígena,  à
margem  do planeta, à margem do capitalismo e da razão, pelo visto  agora
deverá ser assumido pelo islamismo militante, como se se tratasse de  uma
cultura estranha e recém-descoberta, revelando-se como ameaça sombria. Em
busca  da  origem  do  mal,  folheiam o Alcorão,  como  se  ali  pudessem
encontrar os motivos para os atos que de outro modo seriam inexplicáveis.
Falsa pré-modernidade
Intelectuais ocidentais perturbados declaram mais do que depressa, sem  a
menor vergonha, considerar o terrorismo expressão de uma consciência "pré-
moderna",  que  teria  desconhecido o Iluminismo  e  por  isso  teria  de
"satanizar",  com  atos  de  ódio  cego,  a  maravilhosa  "liberdade   de
autodeterminação" ocidental, o livre mercado, a ordem liberal  e,  enfim,
tudo  o  que há de bom e de belo na civilização ocidental. Como se  nunca
houvesse  existido  uma  reflexão  intelectual  sobre  a  "dialética   do
esclarecimento"  e  como se o conceito liberal de progresso  não  tivesse
caído em descrédito há tanto tempo na catastrófica história do século 20,
reaparece como fantasma, no desconcerto diante do ato inédito de insânia,
a  burguesa  filosofia da história dos séculos 18 e 19,  ao  mesmo  tempo
arrogante  e ignorante. Na tentativa forçada de atribuir a nova  dimensão
do  terror  ao  outro, um ser exterior, o bom senso ocidental-democrático
definitivamente despenca para o mais baixo nível intelectual.  Porém  não
se pode manter com tanta facilidade essa definição distorcida do nexo que
há  de fato entre todos os acontecimentos na sociedade globalizada:  após
500 anos de sangrenta história colonial e imperialista, após um século de
uma   industrialização  estatal-burocrática  fracassada  e   modernização
descompassada, após 50 anos de integração destrutiva no mercado mundial e
dez  anos sob o absurdo domínio do novo capital financeiro transnacional,
não  há mais, na verdade, nenhum território exótico oriental que se possa
conceber  como estrangeiro e externo. Tudo o que acontece hoje é  produto
imediato  e  mediado pelo sistema mundial unificado de  modo  forçado.  O
capital "one world" é o próprio ventre gestante do megaterror.
Desvarios neo-ideológicos
Foi  a  ideologia  militante  do totalitarismo  econômico  ocidental  que
preparou   o  terreno  para  os  igualmente  militantes  desvarios   neo-
ideológicos. O fim da era do capitalismo de Estado e de suas  idéias  foi
tomado   como  ensejo  para  silenciar  a  própria  teoria  crítica.   As
contradições da lógica capitalista não puderam mais ser discutidas, foram
declaradas inexistentes, e a questão da emancipação social para  além  do
sistema  produtor de mercadorias, considerada irrelevante. Com a  suposta
vitória  definitiva do princípio de mercado e concorrência, a  capacidade
de  reação  intelectual das sociedades ocidentais começou a se extinguir.
Os  homens  deste  mundo  deveriam tornar-se idênticos  em  suas  funções
capitalistas, embora a maioria já estivesse carimbada como "supérflua".
Enquanto   os   mecanismos  de  crise  do  capitalismo  financeiro   tipo
"shareholder value" lançavam milhões de pessoas à pobreza e ao desespero,
a maioria da intelligentsia global entoava, como a escarnecer, o canto do
otimismo  democrático  da economia de mercado. Agora  estão  recebendo  a
conta: quando a razão crítica se cala, é o ódio assassino que toma o  seu
lugar.
A insustentabilidade objetiva dos modos de produção e de vida vigentes já
não se impõe mais de maneira racional, mas irracional. Assim, o recuo  da
crítica  teórica foi seguido pela marcha do fundamentalismo  religioso  e
etno-racista.
Enquanto  a  crítica emancipatória por princípios ao capitalismo  não  se
reorganizar,   os  acessos  de  paranóia  social  e  ideológica   deverão
transformar-se  no  único instrumento para medir  as  proporções  que  as
contradições  da  sociedade mundial atingiram. Nessas condições,  o  novo
tipo  de  megaterror nos EUA significa que a crise do sistema capitalista
globalizado,  oficialmente  ignorada  e  desprezada,  assumiu  uma   nova
dimensão.
O  que  parece  uma  fúria incomum do terror encontrou  solo  fértil  não
somente na economia de mercado "one world" mas também foi cultivada pelos
aparatos  de poder repressor das democracias ocidentais que agora  querem
lavar as mãos.
É  gente  que saiu errante da Guerra Fria e das guerras da ordem  mundial
democrática  que  se  seguiram. Saddam Hussein adquiriu  no  Ocidente  os
armamentos  usados contra o regime iraniano dos mulás, que  por  sua  vez
saía  de  baixo  das  ruínas  de  modernização  do  regime  dos  xás.  Os
integrantes  do  Taleban  foram paparicados,  instruídos  e  armados  com
eficientes mísseis de defesa aérea, porque na época todos aqueles que  se
pusessem  contra a União Soviética eram contados no reino dos  "bons".  E
Osama  bin  Laden,  com  sua mente insana, agora transformado  em  figura
mítica do mal, pela mesma razão, entrou inicialmente como "predileto" dos
serviços  secretos ocidentais na arena mundial da paranóia abastecida  de
munição.   O  imperialismo  "de  segurança"  da  Otan  (aliança   militar
ocidental), que quer a todo o custo manter sob controle a humanidade  que
não  se  reproduz  mais pelo capital, se utiliza ainda  hoje  de  regimes
tolerantes com a tortura e de diversas formas de insânia, na Turquia,  na
Arábia Saudita, Marrocos, Paquistão, Colômbia etc. etc. Mas, como o mundo
vai  se  desmantelando,  ganha vida própria um aborto  da  natureza  após
outro.  O  "predileto"  de hoje é sempre o "monstro  incompreensível"  de
amanhã.  Os  príncipes  do  terror, protagonistas  de  guerras  santas  e
milícias  formadas  de clãs, não são, no entanto, de  modo  nenhum  meras
forças instrumentalizadas fora do Ocidente -que agora começariam a  fugir
a seu controle. Mesmo suas condições psíquicas não são "medievais", e sim
pós-modernas.   As  semelhanças  estruturais  entre  a   consciência   da
"civilização"  da  economia  de mercado e a consciência  dos  terroristas
islâmicos  não devem causar tanto espanto, se pensarmos que a  lógica  do
capital consiste num irracional fim em si mesmo que representa nada menos
do  que religião secularizada. Também o totalitarismo econômico divide  o
mundo  entre  "fiéis" (credores) e "infiéis". A vigente "civilização"  do
dinheiro não é capaz de analisar racionalmente a origem do terror, porque
afinal  teria  que  questionar  a  si mesma.  Assim,  se  o  supostamente
esclarecido Ocidente define o islamismo como "obra do demônio",  o  mesmo
ocorre  vice-versa. As irracionais imagens dicotômicas de "bem"  e  "mal"
igualam-se  até beirar o ridículo. O que se passa na cabeça  dos  líderes
terroristas  não é substancialmente mais bizarro do que o  modo  como  os
"managers"  da  economia global de mercado percebem e classificam  o  ser
humano  e  a  natureza  sob  a  pressão destrutiva  do  abstrato  cálculo
administrativo.  O terror religioso golpeia, cego e insensato,  da  mesma
maneira  que a "mão invisível" da concorrência anônima, sob cujo  domínio
permanentemente  milhões  de crianças morrem de  fome  -só  para  dar  um
exemplo que põe sob um foco de luz bem estranha o comovido culto  que  se
celebra às vítimas de Manhattan.
Razão instrumental
Quando  a  mídia revela em suas entrelinhas uma admiração  secreta  pelas
capacidades   técnicas  e  logísticas,  de  que  não  se   tinha   idéia,
demonstradas pelos terroristas, também aí fica claro como os  dois  lados
são   quase  almas  gêmeas:  ambos  são  igualmente  adeptos  da   "razão
instrumental". Pois a ambos se aplica aquilo que o estranho capitão  Ahab
diz,  no "Moby Dick" de Melville, grande parábola da modernidade:  "Todos
os  meus meios são sensatos, só meu objetivo é desvairado". A economia do
terror e o terror da economia correspondem-se como imagens em um espelho.
Desse  modo, o autor de um atentado suicida se mostra como a consequência
lógica do indivíduo isolado na concorrência universal que não lhe oferece
perspectivas.  O  que  então se revela é o ímpeto de  morrer  do  sujeito
capitalista.  E  que  esse  ímpeto para a  morte  é  inerente  à  própria
consciência  ocidental,  e  não  apenas  desencadeado  pela  desesperança
intelectual  do  sistema  totalitário de mercado,  dão  provas  os  casos
frequentes  de  psicopatas  que  invadem  escolas  norte-americanas  para
assassinar  em  série  filhos da classe média e o atentado  de  Oklahoma,
reconhecidamente  um  produto  genuíno do delírio  interior  dos  Estados
Unidos.  O ser humano reduzido a funções econômicas enlouquece  da  mesma
maneira   que   aquele  cuspido  como  "supérfluo"   pelo   processo   de
aproveitamento. A razão instrumental dispensa seus filhos.
Pessoas e não-pessoas
Como   o  núcleo  irracional  de  sua  ideologia  é  tal  e  qual  o   do
fundamentalismo  islâmico, o capitalismo nada mais pode que  conclamar  a
uma cruzada, à "guerra santa" da "civilização" ocidental. Somente aquelas
vítimas  -as  colunistas mais famosas dos EUA, corretores em Manhattan  e
cidadãos  da  liberdade  ocidental-  são  vistas  como  vítimas  reais  e
pranteadas em missas à sua memória.
Por outro lado, os civis iraquianos mortos e crianças sérvias esfaceladas
por  bombas  atiradas  de uma altura de dez quilômetros,  porque  a  pele
preciosa  dos  pilotos  americanos não  podia  sofrer  um  arranhão,  não
aparecem  como  vítimas humanas, e sim como "efeitos  colaterais".  Mesmo
diante  dos mortos o apartheid global não cessa. O conceito ocidental  de
direitos  humanos contém como pré-requisito tácito saber se  o  indivíduo
tem  valor  de venda e poder de compra. Quem não preenche esses critérios
na verdade não é mais um ser humano, mas uma porção de biomassa.
Dessa  maneira,  o  fundamentalismo ocidental divide o mundo  no  "reino"
supostamente civilizado, de um lado, e nos "novos bárbaros", de  outro  -
como o jornalista francês Jean Rufin já constatava no início dos anos 90.
O  império  balança.  Dentro de poucos meses o mito da  invulnerabilidade
econômica  será desmascarado pela crise da nova economia.  No  momento  o
mito da invulnerabilidade militar está em chamas com o Pentágono.
O  pensamento  utilitário do funcionalismo de elite tenta tirar  proveito
até   mesmo   dessa   catástrofe.  Pois,  com  os  mercados   financeiros
despencando, consegue-se de repente conteúdo para uma versão forjada  dos
fatos:  não  é  a  ordem  vigente que está  obsoleta,  se  outras  bolhas
financeiras  estão estourando e a economia mundial de mercado  porventura
está entrando em colapso. O "choque externo" do ataque terrorista, sim, é
que teria sido a causa disso -segundo Wim Duisenberg, presidente do Banco
Central  Europeu. O fracasso do sistema é redefinido pela maldade externa
dos outros, "infiéis", mas com ela é irreversível.
Ao  mesmo  tempo, espalha-se uma onda de propaganda de guerra  igualmente
histérica  e  sentimentalóide, como se estivéssemos vivendo o  agosto  de
1914.  Por  toda parte estão se apresentando voluntários aos  montes,  em
meio ao crash sobem as ações da indústria de armas, quase já se começa  a
desejar  uma  situação  de  cruzada. Mas grupos  clandestinos  de  homens
armados  de  facas e lâminas de cortar tapete não desafiam a  mobilização
das  massas  e  o agrupamento de todas as forças sociais.  O  terror  não
representa  nenhum  império opositor externo,  com  status  de  Estado  e
economia  de  guerra.  Ele  é  a  própria  nêmesis  interior  do  capital
globalizado. Por isso não pode provocar um novo boom armamentista.
Também  no  âmbito militar a cruzada vai dar em nada. Aconteçam possíveis
ataques  de  retaliação por parte dos EUA a dez quilômetros de  altitude,
como  infelizmente é de costume, dizimando uma população civil  qualquer,
ou  saiam  tropas terrestres, mesmo sofrendo muitas baixas,  vagando  por
distantes regiões montanhosas, como o Exército da União Soviética teve de
experimentar no Afeganistão, uma coisa é certa: dessa pseudoguerra movida
contra  os demônios da crise mundial que o próprio capitalismo apresentou
não  sairá fonte de alimento de que o capitalismo possa se amamentar para
sobreviver.
Também  se ouvem vozes razoáveis, de bombeiros em Nova York a jornalistas
e políticos isolados, que pelo menos dizem que uma guerra é absolutamente
sem sentido. Mas essa razão ameaça permanecer desamparada e ser arrastada
pela  onda  de  irracionalidade  se  não  proceder  a  uma  análise   das
circunstâncias da crise. Para realmente afastar o terror do  terreno  que
lhe  é fértil, só há um caminho: a crítica emancipatória ao totalitarismo
global da economia.
Robert  Kurz  é  sociólogo e ensaísta alemão,  autor  de  "O  Colapso  da
Modernização" (ed. Paz e Terra) e "Os Últimos Combates" (ed. Vozes).  Ele
escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Marcelo Rondinelli.
Publicada na Folha de São Paulo no domingo, 30 de setembro de 2001.
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Dica do amigo:
Paulo J.P-Braga <[email protected]>
Saturday, November 03, 2001 2:48 PM
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